3 de janeiro de 2010

"O grande medo era se a PIDE apanhava o Álvaro"

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50 anos da fuga de Peniche. A 3 de Janeiro de 1960, dez comunistas presos no Forte conseguem uma evasão espectacular. Foi o pior momento para o sistema de repressão da polícia política, a PIDE, e fez tremer o regime de Salazar. Maria Eugénia Cunhal, irmã de um dos fugitivos, Álvaro Cunhal, aceitou recordar os dias de há meio século, falar do dirigente e um pouco dela.


Há exactamente 50 anos o seu irmão fugia da prisão do Forte de Peniche. O que recorda desses dias?
Lembro-me de como soube da fuga. O meu pai chegou a casa e disse que tinha encontrado um juiz seu conhecido que lhe dissera em voz baixinha: "Parece que o Álvaro fugiu de Peniche." Entre o alegre e o receoso, contou-nos e ficámos muito contentes pela fuga do meu irmão, porque ele ficaria lá para o resto da vida com as medidas de segurança que lhe seriam sucessivamente aplicadas. Ao mesmo tempo, pensávamos no que é que lhe poderia acontecer se a PIDE o apanhasse novamente.

Nessa primeira semana após a fuga pouco sabiam do que acontecia?
Nem soubemos que eram dez ao princípio! Nesses primeiros dias não sabíamos de nada, nem que eram mais camaradas [nove], nem como é que tinha sido - apenas que tinham fugido. Só uns dias mais tarde é que começámos a ter conhecimento de mais pormenores e a ficar descansados.

Nessa altura, seria o homem mais procurado em Portugal?
Provavelmente deram mais importância ao Álvaro, mas os camaradas que estavam presos com ele também eram dirigentes destacados do partido.

Ficaram preocupados com o seu futuro após a fuga de Peniche?
Não. Eu sabia que ele iria para a clandestinidade, isso não me preocupava. O grande medo era se a PIDE apanhava o Álvaro e lhe dava um tiro. Se fosse novamente preso, o que é que lhe fariam?

Podiam tê-lo assassinado, como fizeram a outros militantes do PCP?
Podiam tê-lo feito.

O seu pai tentou saber algo mais após a fuga?
É natural que passados uns dias algum camarada fosse ter com ele e lhe tivesse contado como é que as coisas estavam. Depois, viemos a saber a história do guarda da GNR que tinha estado conivente com a fuga e outras coisas através do partido.

Como é que foram vividos em casa esses dias a seguir à fuga?
Numa grande inquietação, misturada com satisfação e um medo muito grande.

Nunca esperaram que Álvaro Cunhal vos contactasse?
Não, como é que era possível?! Isso era entregar-se nas mãos da polícia. Não, de maneira nenhuma.

Na altura, ainda vivia com os pais?
Nessa altura já estava casada, com filhos, mas vivia com os meus pais.

Sentiam que a casa era vigiada?
A nossa casa foi muitas vezes vigiada. Confirmámo-lo depois do 25 de Abril quando me entregaram algumas coisas do que havia na PIDE sobre mim, como uma série de fotografias tipo bilhete de identidade que eram distribuídas para me identificarem e localizarem.

Mas nessa altura havia vigilância?
Não demos por nada, mas muitas vezes, mesmo quando os meus filhos já eram mais crescidos, via-se que havia nitidamente.

E procuravam notícias nos jornais?
Procurávamos tudo quanto pudesse dar informações sobre o que se estava a passar, mesmo nos jornais, apesar de serem censurados, que não publicavam nada.

Só o Avante! é que noticiou logo.
Claro, mas os jornais oficiais, não.

Mesmo sendo um facto público e a grande machadada no regime?
Realmente foi, e até o director da PIDE foi deposto pelo Salazar. Isso veio a saber-se, tal como o facto de haver muita gente a festejar e a beber um copo à saúde deles.

Nunca soube por onde é que o seu irmão andou nessas semanas?
Era impossível sabê-lo, e até seria muito mau se tivéssemos conhecimento. Soubemos mais tarde que o Álvaro estava no estrangeiro.

Ainda esteve em Portugal mais de um ano. Não souberam nada dele?
Nada, nada.

Sentia-se mais descansada quanto à sua segurança enquanto preso do que na clandestinidade, após a fuga?
Só no aspecto de não o matarem nem torturarem, porque nessa altura já não o faziam. Mas entre estar a lutar para seguir a vida que sempre quis e estar preso, não tinha dúvidas! Mesmo correndo riscos.

Não tinha dúvidas de que ele iria regressar à clandestinidade?
Não tinha dúvidas.

Esses tempos de prisão foram muito duros. Visitava-o?
Sempre, só mesmo se não pudesse ir, é que não o via, isto a partir do momento em que começou a receber visitas. No início, foi muito complicado porque esteve muitos anos em isolamento.

E nessas visitas alguma vez revelou que estava a tentar fugir?
Não, nem enquanto esteve na Penitenciária de Lisboa. O que aconteceu foi que um tempo antes - na altura nem ligámos uma coisa à outra - o Álvaro começou a entregar-nos coisas que tinha na cela quando íamos à visita: fotografias, cartas nossas ou livros.

Estava a desfazer-se dos bens...
Para não ficarem lá e perderem-se.

Os desenhos da prisão também?
Não, os desenhos ia-os entregando conforme os fazia, e nós trazíamo-los para casa.

Qual era a sensação de ir à prisão?
As visitas à prisão aconteceram de muitas maneiras. De início, quando estava na Penitenciária, era horrível, porque ficávamos de pé. Era num corredor; ele de um lado e nós do outro, separados por um vidro que tinha um buraquinho em baixo, mas quase não se ouvia aquilo que se dizia. Numa das vezes levei o meu filho mais velho - afilhado do Álvaro -, e ele quase nem o via, tais eram as condições de visita. Depois, passaram a ser no gabinete do chefe dos guardas, com ele sempre a vigiar-nos, o meu pai e eu de um lado e ele do outro. Quando o Álvaro foi para a enfermaria, foi melhor, porque acontecia num átrio, um sítio aberto, e estava ao nosso lado.

Como eram as visitas em Peniche?
Durante bastante tempo, as visitas eram juntas. Nós e as famílias dos outros presos levávamos almoço, havia uma mesa e ficávamos a comer juntos - às vezes levava os meus filhos, para ele os ver -, mas, a certa altura, o director da prisão achou que era de mais e passou para a modalidade do parlatório. Que, em Peniche, era horrível, porque não nos podíamos tocar, dar um beijo ou um abraço. Além disso, havia uma ressonância provocada por todos a falar ao mesmo tempo com as famílias que nem deixava perceber o que se dizia. Eram visitas muito tristes.

Quando o via, notava isso no olhar?
Não, nunca. Isso não! Estava sempre muito afectuoso e feliz por estar connosco, era o que transparecia. Falava muito e, como já podia ler e escrever, comentava muito aquilo que lia e o que escrevia.

Como é que tinha acesso a livros?
Ele pedia-os e nós levávamos.

Que tipo de literatura pedia?
Levávamos livros sobre tudo, e não de um único género. Desde temas de agricultura, literatura ou estudos - podia ser sobre o Eça ou qualquer escritor nosso. Era muito heterogéneo naquilo que pedia.

Eram livros para as investigações?
Para trabalhar, por norma, mas nem sempre. Nas cartas que enviava, o Álvaro falava muito do que lia, dava as opiniões que tinha deles e estendia-se por uma ou duas páginas no tema que estava a ler, ou no que sentia ou pensava sobre a literatura.

Nas cartas, cifrava mensagens?
Eram cartas normais, porque eram sempre lidas antes de serem enviadas! E as folhas de papel eram numeradas, nada podia escapar.

Com que idade é que se lembra da primeira prisão do seu irmão?
Eu era muito pequenina, teria talvez oito ou nove anos. Lembro-me de nessa altura ter ido ao Aljube vê-lo, e ainda hoje recordo o cheiro daquilo. Era muito escuro, tinha uma espécie de grade - posso estar a dizer uma coisa que não era exactamente assim, mas é a minha memória de infância - num intervalo que me separava do Álvaro. Eu via-o do outro lado, muito magro, porque tinha sido brutalmente torturado, e com o cabelo cortado. Fiquei muito impressionada por o ver assim e, também, quando observei a roupa dele, que veio do Aljube e estava cheia de sangue. Olhei para aquilo e, como já tinha ouvido falar na PIDE, na polícia que batia, fiquei preocupada. E, aí, a minha mãe disse, para me sossegar: "Isto não é nada. Foram uns bichos que lhe morderam!"

Essas visitas deviam ser traumáticas para uma criança de nove anos?
Muito. Tanto que o Álvaro disse para não me levarem mais. Não queria que eu fosse lá enquanto estivesse naquela situação.

Em liberdade, Álvaro Cunhal vivia em casa dos pais?
Sim, vivia.

Receava que ele não voltasse a casa?
Era um receio que existia, mas não estava sempre vivo, ou não se conseguiria sobreviver! Lembro-me de uma vez ele me ter dito: "Olha, Geni, se um dia, quando acordares, a minha gabardina não estiver pendurada no bengaleiro, já sabes o que aconteceu: fui preso. E, nessa altura, tens de ajudar muitos os pais, dar-lhes muito carinho porque vão ficar muito tristes." Eu tinha 12 anos, e realmente, numa manhã, levantei-me e a gabardina do Álvaro não estava lá, e pensei "pronto, já foi preso". Então, fui ao quarto dele - não sei qual foi o meu critério, se certo ou não - e enfiei todos os papéis que me pareceram que podiam comprometê-lo ou fazer-lhe falta debaixo dos quadros pendurados nas paredes. E, de facto, a PIDE foi lá no dia seguinte passar revista e não os apanhou.

A opção de vida de Álvaro Cunhal devia ser complicada para os pais. Designadamente para a mãe?
Para o meu pai também foi muito complicado, porque o sofrimento não se acaba na compreensão. Para a minha mãe, que já tinha perdido dois filhos - a minha irmã morreu com nove anos e o meu irmão António, que podia ter sido um grande artista plástico, morreu com 22 -, ter o Álvaro na prisão era uma situação muito difícil, mas foi vê-lo durante muitos anos. A ideia que se tem da reacção da minha mãe não corresponde à verdade, tem que se ver que era uma mulher que sofrera muito. Era conservadora e católica, é verdade, mas durante muito tempo foi ver o meu irmão à prisão. Chegou uma altura em que disse: "Eu não tenho coragem de voltar a vir cá ver-te." Ainda tenho uma carta dela em que diz: "Meu filho, não te escrevo mais porque não aceito que as nossas cartas sejam lidas por elementos da PIDE." Isto mostra que não era aquela mulher dura. Já tinha sofrido muito e não concordava politicamente com o que Álvaro era. Ela dizia: "Um rapaz tão inteligente, que podia ser tudo o que quisesse na vida, ou está na clandestinidade a passar mal ou na prisão." E não aceitava isso.

Diz-se que ele também a provocava quando vestia um fato-macaco!
Nunca, isso é mentira. É uma história que foi inventada não sei porquê. Ele não provocava a minha mãe, e a esse nível muito menos. Nem havia fatos-macaco lá em casa! Isso não é verdade.

O seu pai também foi prejudicado profissionalmente por o defender?
Na vida profissional, acho que não, porque o meu pai sempre rejeitou ser advogado de bancos e de grandes companhias. Não queria defender o grande capital, era advogado de famílias, de pequenas lojas e pequeno/médio comércio. Só foi prejudicado como escritor. Ele começou a publicar textos sobre teatro na revista Vértice com o seu nome - o meu pai era muito dado ao teatro amador - e censuravam-no. Então, arranjou um pseudónimo, Pedro Serôdio, e os textos voltaram a passar, até ser descoberto. Quando entenderam que Pedro Serôdio era Avelino Cunhal, voltou tudo ao mesmo. Nesse aspecto, sim, foi prejudicado por ser pai do Álvaro.

O seu pai tem muito por publicar?
Sim, principalmente peças de teatro em um acto. Mas muito do que ficou por publicar também se deve a o meu pai não ser pessoa para andar atrás de editores durante o fascismo. Era muito difícil o nome Cunhal aparecer numa editora...

Recentemente foi publicado um livro do seu pai. Teve boa reacção?
É o Nenúfar no Charco. Sei de muitas pessoas, num círculo restrito, que compraram o livro e gostaram muito. Sei que estava à venda em grandes livrarias, mas pouco mais, até porque não houve críticas.

A vida política de Álvaro Cunhal acabou por exigir que se separasse cedo da família. Isso marcou-a?
Muitíssimo. Ele ia e vinha, e, quando não estava na clandestinidade ou preso, vivia em casa dos pais. Quando saía, ia para a clandestinidade e deixava de estar em casa.

Até à fuga de Peniche, qual foi o momento em que mais receou pela vida do seu irmão?
Foi quando o prenderam na casa do Luso, porque enquanto estava nas mãos da PIDE não vivíamos sossegados. Principalmente no período em que estava sem visitas e desconhecíamos o que acontecia com ele.

Ele lidava consigo com outra atenção devido à sua pouca idade?
Sim e tinha em conta o meu crescimento. Quando era muito pequena - no meu aniversário dos dez anos -, ele estava preso e mandou--me uma história com bonecos e com uma linguagem que eu entendesse. Dizia sempre que fosse muito carinhosa com os pais, sem ser moralista…

Com preocupação?
Sim. Escrevia: "Vê lá os pais, eles estão tristes por eu estar aqui, e tens de lhes dar beijinhos, tens de ser carinhosa com eles." Depois, à medida que fui crescendo, a correspondência era diferente, mas sempre no sentido de esperar que eu fosse uma pessoa honesta, com os valores e as qualidades que achava que um ser humano deveria ter.

As pessoas têm como referência em Álvaro Cunhal uma austeridade pouco dada a essas preocupações com uma irmã mais nova.
As pessoas não têm a obrigação de o conhecer! Por isso, fazem uma ideia do Álvaro diferente do que ele era na verdade, porque decorria da sua postura como político e nada tinha a ver com o que era em família - não nos viam juntos! Mesmo depois do 25 de Abril, a não ser no partido, na casa dele ou na minha casa, as pessoas não viam o Álvaro com a família, com os sobrinhos ou comigo, só o político que fazia um discurso ou ia à televisão para um debate.

Intimidade que protegia. Porquê?
Não estou dentro dele para saber. É uma questão de temperamento.

Qual foi a percepção dos sobrinhos quando o viram após o 25 de Abril?
Tinham muito orgulho nele.

Tinha paciência para as crianças?
Já não eram tão crianças no 25 de Abril, quando reencontraram o tio, mas foi fácil.

Sofreram alguma penalização por serem da família de Álvaro Cunhal?
Não. O mais novo ia ser julgado no dia 26 de Abril, pela sua actividade nas associações de estudantes, e não por ser sobrinho do Álvaro.

Houve outro dos seus filhos que saiu do País. Porquê?
Porque poderia ser preso por se recusar a ir para a Guerra Colonial.

Até à fuga de Peniche, Álvaro Cunhal perdeu o direito à vida pessoal. Convivia bem com a impossibilidade de ter uma família?
Quando uma pessoa faz opções de fundo e vive com elas, não se lastima. A vida do Álvaro foi como a de muitos outros camaradas que estiveram na clandestinidade, muitos até com vidas mais complicadas e com filhos.

Aprendeu muito com ele?
Muito, muito mesmo. A minha maneira de estar no mundo e com as pessoas. Fundamentalmente foi isso, a minha estrutura básica.

Mas houve algo que lhe tenha dito que serviu de orientação na vida?
Não, porque o Álvaro não dizia as coisas para me marcar. Ao longo do tempo, eu ia-me construindo, e ele não me dizia se era assim ou de outra maneira. Foi principalmente na estrutura humana que me ajudou a formar, daí começar a interessar-me pelas pessoas, reparar nas que eram exploradas e nas injustiças no mundo. Que me mostrava e contava, mas não impunha.

Quando leu Até Amanhã, Camaradas [sob o pseudónimo Manuel Tiago], sabia que o livro era dele?
Não fazia ideia nenhuma. Na altura, li-o e gostei muitíssimo. Acho que é um grande livro, porque é um pedaço da nossa história.

Vê-lo escritor surpreendeu-a?
Não foi propriamente uma surpresa, porque via nele uma pessoa com tantas facetas e capaz de muito.
Uma das particularidades dos livros é mostrar um respeito pelas mulheres, pouco habitual à época.
Nele, essa era uma situação mesmo pessoal, e não teórica. Conhecia as mulheres e respeitava-as, uma a uma, nos seus direitos.

E partilhava das tarefas da casa?
Em casa da minha mãe, claro que não, porque era uma casa burguesa que tinha a criada de fora e a cozinheira. Eu própria não partilhava, e era rapariga, só mais tarde, quando comecei a ter consciência e a não querer que me servissem.

Como era a relação dele com a filha?
Ele estava na clandestinidade nessa altura, e por isso não sei como seria, mas com certeza que com a filha fazia o mesmo que fez comigo: dava-lhe tudo o que podia e a sua vida permitia.

Foi difícil conviver com um irmão que fazia parte da história?
Nem tal coisa me passava pela cabeça, era irmão, como os outros.

Vinha aqui visitá-la a casa?
Sim... enquanto pôde. Depois, por questões de saúde, comecei a ir visitá-lo a casa dele, quando teve a primeira casa legal - mesmo depois do 25 de Abril, durante muito tempo, a sua casa era clandestina.

Porque manteve a casa clandestina durante tanto tempo?
Não foi uma decisão dele, certamente, mas do partido. Por uma questão de resguardo, penso.

E a própria vida pessoal manteve-a também clandestina.
A família sabia mais do que isso. Não sei se as pessoas conheciam a companheira dele, a Fernanda.

A morada oficial de Cunhal era a desta casa, a sua. Porquê?
Foi sempre assim, porque era a maneira de não ter de dar outra morada. Estava o assunto arrumado! Nunca morou aqui, só vinha - muitas vezes - para estar connosco e no Natal para passar a noite cá.

Como era nesses momentos?
Como uma pessoa que conversa sobre tudo e quer saber como estão as coisas. Da saúde, das preocupações, de tudo. Normalíssimo.

Era-lhe fácil falar com os netos?
Sim e tinha uma óptima relação com eles. Tinha muita paciência e jeito para lidar com os miúdos.

Tal como tivera para com a filha?
Era muito terno e cuidadoso.

Tem em sua casa vários quadros do seu irmão. Como é que ele descobriu a pintura?
Desde miúdo que gostava de desenhar e de fazer bonecos, até fez uma exposição, em Seia, em criança. Com a sua vida na clandestinidade, não tinha tempo para pensar nisso nem para desenhar, só na prisão é que o começou a fazer, depois daqueles anos de terrível isolamento, sem um livro, um lápis ou um som durante anos. Quando começou a pedir papel para desenhar, fê-lo cada vez melhor, e a certa altura até experimentou o óleo, e pediu tábuas para pintar.

Havia pintores que apreciava?
Havia um ou outro. Lembro-me de uma vez - nós falávamos também em pintura - ter ido a Veneza e de ele me dizer: "Olha, no Palácio dos Doges, não deixes de olhar o tecto pintado por Tintoretto, porque é uma maravilha."

Durante o exílio, viu-o alguma vez?
Vi-o em França numas férias, com os meus filhos e ele. Foi a primeira e única após fugir de Peniche.

Era difícil para ele a ausência de Portugal e da família?
Sim. De Portugal, pela sua luta política, que teria de ser de uma maneira diferente, embora fosse a sua vida 24 horas por dia. Da família, era muito complicado. Quando morreu o nosso pai e o meu marido não estava cá, ele sofreu muito.

Nesse encontro em Paris, ainda acreditava no fim do regime?
Uma pessoa que luta, tem de acreditar. Nunca teve dúvidas de que um dia iria acabar, até porque estava no único partido que existia para lutar contra o fascismo.

A queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética provocaram-lhe algum desencanto na luta?
Desencanto, não, mas muita tristeza e preocupação.

Pressentiu o colapso da URSS?
Com certeza que sim, todos tivemos essa preocupação, mas mais do que isso, não. Uma pessoa, quando luta uma vida inteira, tem sempre a ideia do futuro.

Revê-se no Portugal de hoje?
Não. Com a situação política que temos, sem estarmos a produzir na agricultura ou na indústria, com o desemprego crescente, empresas a fechar, os reformados a viver miseravelmente… Há outras coisas que me afligem, a televisão que temos, cada vez se lê menos!

Revê-se a nível político?
Claro que não. O País está com um Governo que tem uma política que vai contra os interesses da grande maioria dos portugueses.

Qual a sua opinião sobre a justiça?
É a de qualquer português que tenha os olhos abertos.

Politicamente, há uma maioria de esquerda. É uma solução?
Não é suficiente para qualquer mudança a nível de parlamento.

O que pensa dos conflitos entre Cavaco e Sócrates?
Parece que o PS está a fazer tudo para que haja novas eleições.

O PCP tem papel fundamental?
Claro, é o único que o tem.

O que pensa dos sucessores de Álvaro Cunhal na direcção do PCP?
São muito diferentes. Acho que Jerónimo de Sousa é um excelente secretário-geral do partido, tem um contacto muito bom e é profundamente firme nas convicções.

Até tem seduzido muitos eleitores?
Não gosto da palavra seduzir, mas temos estado a aumentar.

Entrevista realizada por João Céu e Silva, Diário de Notícias, 03/01/2010

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